Para trás
Não venham me perguntar porque fugi da despedida.
Porque saí assim de repente. Pra não voltar. Sem falar com ninguém. Deixando apenas um bilhete que só seria lido quando eu já estivesse longe.
Eu não quis mentir nem ser falso. Eu não quis dizer até logo para quem não desejo mais encontrar.
Não fiquem chateados. Ou achando que eu sou antipático (covarde, talvez, mas não antipático).
Eu só não queria ser pego em meu ponto fraco.
Saibam então que carrego sempre comigo os meus amigos. E todas as lembranças. De tudo que se passou.
Ainda estão vivas em mim. E espero que em vocês também.
Por favor me entendam e me perdoem.
Eu só queria que vocês não percebessem que meus olhos estavam mais úmidos que de costume.
Toda despedida é triste. Por mais aguardada que seja. Pois significa o fim de algo. E, muitas vezes, o início da saudade.
E saibam que no momento em que cruzei aquela porta, na calada da noite e na surdina, eu não estava apenas dizendo adeus para lugares e pessoas que de gostava.
Eu deixei para trás alguns de meus sonhos.
domingo, outubro 28, 2001
Jardim das lembranças
Era dono de um terreno. Que achava não haver necessidade de cuidar e que por isso a cada ano que se passava mais se assemelhava a um terreno baldio.
Sem dono, sem rumo, sem cuidado.
Vazio.
Vivia seus dias pacato, conformado com a feiúra e deteriorização de suas terras e velho demais para encontrar energias para modificar a situação.
Até o dia em que encontrou, por acaso, um belo e raro espécime de rosa selvagem. De alvura ímpar e aroma suave.
Uma rosa que daria um belo jardim.
Voltou ao local no dia seguinte e resolveu que transplantaria a rosa para suas terras pois gostaria de possuir tamanha beleza.
Dia após dia olhava embevecido a rosa selvagem crescer com fulgor, a cada semana mais perfumada. A única coisa bela em seu terreno. Um oásis de juventude em suas terras mortas.
Naquele momento, mesmo com sua fraqueza, mesmo com suas péssimas experiências anteriores, resolveu fazer de seu terreno um jardim.
Com mais rosas como aquela.
Colheu sementes da flor e plantou-as num vaso, que deixou na janela.
Dedicou seus dias então a cuidar de seu terreno.
Matando ervas daninhas e insetos, preparando o solo, retirando pedras, regando. Não se sentia cansado. Pensava em como seria belo o seu jardim e seguia o trabalho.
De noite, acompanhava como andava o seu vasinho na janela.
Nem sinal de flor. Era uma rosa selvagem, desconhecida, daquelas que exigem muitos métodos e cuidados.
Ele usou todos os que conhecia.
Ao fim de duas semanas já podia vislumbrar como ficariam suas terras. O terreno estava plano e preparado, sua rosa dormia tranqüila junto ao portão.
Acordou no meio da noite com os ventos. A tempestade chegara sem avisar. De lugar nenhum.
Era daquelas memoráveis, arrasadoras, furiosas. Sua pequena casa parecia que ia ceder à força do vento e da chuva. Ouvia-se ao longe o barulho de árvores caindo.
Ainda no torpor da sonolência, correu para a porta pensando no estrago em seu terreno.
E em sua rosa.
Tentou sair de casa. Era arrastado pelo vento. Não conseguia enxergar. Seus pés afundavam na lama e pareciam pesar toneladas. Os poucos metros pareciam quilômetros. Desesperava-se ao saber o inevitável. Não sabia se eram lágrimas ou a chuva em seus olhos.
Apenas corria.
Não havia mais nada no local onde ficava sua rosa. Apenas terra revirada e água, mais água que já havia visto.
Deixou-se cair no chão, com a lama e a chuva molhando seu corpo. Cada pingo trazia o peso de mais um ano a sua idade. Acabara. Tudo. Sabia que gritava e chorava, mas não podia ouvir nada, apenas a fúria do clima.
Qual a razão de levarem dele o tão pouco que tinha? O seu único valor. Qual a razão de perder o que o fizera voltar a viver e não simplesmente acordar dia após dia?
O que fizera para merecer? Para não merecer?
Por que logo COM ELE? Por que logo AGORA?
Tudo se passava embaralhado em sua cabeça, ouvindo o rugido do mundo sendo lavado e carregado.
Era apenas o fim.
Acordou no dia seguinte. Muito além da hora. Sentia-se doente e velho. Fitou o céu cinza e solene com desânimo e ausência.
Viu seu terreno, que lhe custou semanas de trabalho, se transformar num monte de lama. Disforme, abandonado, vazio.
Não havia mais nada.
Nunca mais veria a beleza e sentiria o perfume de sua rosa. Não mais admiriraria sua forma delicada.
O último resquício de sua presença era o vasinho, que guardava sua semente e que sobrevivera dentro da casa.
Hoje vive e acorda apenas para ver se em seu vaso há algum sinal de florescimento. E passa horas e horas do seu dia cuidando daquela terra. Se perguntando se ainda há chances ou se as sementes estão mortas.
Se a rosa, tão rara, selvagem e difícil pode voltar a sua vida.
E se seu terreno, tão vazio e mal-cuidado, pode novamente ser um jardim.
quarta-feira, outubro 17, 2001
A encomenda
Sentiu o gosto do café forte bater no estômago vazio. Lembrando-o quantas horas se passaram desde a última refeição. Não havia nada na geladeira. Apenas uma caixa de leite, talvez vencida. Não havia nem cerveja. Nem dinheiro pra comprar.
Tinha que fazer um texto. Um frila. Sobre amor.
Sentou na frente de seu velho 486. O que escrever sobre amor? O que AINDA escrever sobre essa merda? Como escrever sobre isso num ambiente como a sua casa. Com tudo largado, roupas pelo chão, móveis jogados em qualquer lugar.
Como escrever sobre algo que não existe?
Não havia como entender a razão de quase todos os seres humanos escreverem, buscarem e viverem por algo que, se sabe, sempre vai acabar, que, se sabe, sempre termina em dor.
Como então escrever sobre isso? Um contozinho mela-cueca? Um texto quase-erótico? Um romance ingênuo? Uma história amarga e desiludida?
Ele não tinha como escrever sobre o amor. Pois perdera o seu, muito tempo atrás. Tanto tempo que não havia mais saudade. Nem lembrança. Era apenas mais uma daquelas coisas da vida que você só sabe que realmente aconteceu porque você sabe que a viveu. Um borrão distante. "Aquele era eu?" Era. Daquela época.
Não queria soltar outro texto ácido e desesperançado, como todos os seus outros. Havia nele ainda a capacidade de abstrair sua própria tristeza e criar algo belo dali. Do infértil.
"Uma flor num pântano"
Ah, que imagem clichê......
Querem que fale sobre o amor. Mas não esperem que ele consiga. Não nesta noite modorrenta. Não com esse café queimando o estômago e cujo gosto ainda impregna sua boca.
Ele quer dar alegria. A ilusão. Mas só vê tristeza.
E, ao contrário dos outros escritores, não quer mentir. Não hoje.
Tem dias que são especialmente opressivos.
Dias em que as pessoas com quem você se importa são frias.
E se vão.
Olhou para seu monitor e havia apenas um texto grande, sem começo, sem desenvolvimento nenhum de idéias, sem final, sem moral, sem metáfora. Apenas um punhado de palavras. Escritas de forma febril, como num impulso cego. Que não atinge nada, que não constrói nada, que não fere ou emociona.
Um texto que ia do nada ao lugar nenhum.
Poderia algo ser mais perfeito para se falar de amor?
Poderia. Mas não hoje. Nesse dia infeliz.
As palavras são como o tempo. Se você as desperdiça, elas não voltam.
Nunca mais.
quarta-feira, outubro 10, 2001
Baile de máscaras
Ah, malditos cortesãos.....
Saiam daqui. E levem consigo seus trejeitos estudados. Levem embora sua cultura pretensamente refinada. Suas roupas da moda. Apodreçam e queimem no inferno das vaidades e inverdades.
Causam-me tanto tédio (hoje não rio-me mais)...
Não quero mais esses assuntos vazios. Não quero mais os modismos irritantes. Não quero mais sua ânsia de modernidade. Que me faz vomitar e me faz, a cada dia, mais antiquado (por opção).
Levem daqui seus termos em inglês. Levem daqui a sua pretensa liberdade. Irritante e ridícula.
Levem daqui a sua falsidade.
Hoje e agora, neste salão de baile, romperei com tudo que não seja sincero e mágico. Tudo que não esteja ao meu alcance. Tudo que seja superficial e raso. Tudo que me faz mal.
Se há alegria nesta existência, ela está ao lado da simplidade.
Vão embora. E levem-se para longe de mim.
Antes que minha raiva e asco aumentem mais. Antes que eu perceba que vocês nada mais são do que pessoas tristes.
Antes que eu sinta pena do que odeio.
Chamam-me de covarde. E, admito, o sou.
Porém mais covardes ainda são vocês. Circulando por entre personagens.
Tão patéticos.
Sim, sou covarde.
Mas, ao menos, sou autêntico.
quinta-feira, outubro 04, 2001
O silêncio
Querida, não me pergunte a razão de eu ser assim tão calado.
De te olhar intensamente e não dizer nada.
Você fica então me observando, tentando adivinhar no que eu estou pensando, o que passa pela minha cabeça. E me chama de enigma.
Eu não sou um enigma.
Eu só fico quieto pra você pensar que talvez eu seja um cara misterioso. Pra você pensar que talvez eu tenha um tiquinho de charme. Que eu guardo algum segredo.
Eu não digo nada pra valorizar minhas poucas palavras. E pra você achar que elas têm mais importancia do que realmente têm.
Eu não digo nada porque eu não sei o que dizer.
Eu não digo nada porque eu não tenho o que dizer.
Nenhuma história pra contar. Como os outros têm.
A minha vida é tão normal...
E há algo mais medíocre do que ser comum?
Querida, não me pergunte,
porque eu não falo nada.
Eu só quero te dar um pouco de aventura.
Eu só quero que você ache que eu tenho alguma graça.
Não me pergunte. Pois eu terei então que mentir.
Eu sou apenas um ator
de filme mudo
num monólogo
tão sozinho.
quarta-feira, outubro 03, 2001
Poema simples
Esqueça o que te alimenta
esqueça o que ficou pra trás.
Se foi o abraço que acalma
esqueça, pois não volta mais.
Esqueça o rosto singelo
e a voz que não quer se calar
esqueça o dia perfeito
esqueça, pra não mais lembrar.
Esqueça as suas promessas
esqueça o que já passou
esqueça quem você é
esqueça, pois já acabou.
segunda-feira, outubro 01, 2001
Redenção
Bêbado, deixou-se largar na poltrona. O barulho das caixas de som era ensurdecedor. A pista de dança estava tomada, mas ele não conseguia mais divisar por quem. Chegara naquele estado etílico onde a euforia e o torpor se transformavam em sono. Fora para a boate sozinho. Já não tinha mais amigos. Seu comportamento afastara a todos e ele não sabia como pedir desculpas. Nunca soube.
Olhou para a pista e sua mente alterada pensava no que realmente o levara a estar ali, naquele sofá, naquele lugar que rescendia a cigarro, naquele momento.
Nada.
O que o fez ser assim? O que o levou a estar ali, sozinho, onde não queria estar? Onde não tinha o que fazer?
Será que todas aquelas pessoas, entregues à música, dançando como se aquilo fosse a única coisa que ainda os prendia à sanidade não viam o vazio que tudo aquilo significava?
O vazio em suas expressões falsamente sorridentes?
O que será que os move...nos move a ser assim?
Será que, no fundo, todos nós, por mais céticos que sejamos, ainda esperamos por aquele momento, aquele lugar, aquela pessoa
que vai fazer tudo ser diferente?
Será que esperamos pela redenção
que vai fazer a paz durar mais do que uma música? Mais do que a SUA música?
Existirá realmente esse dia, esse lugar, essa pessoa
tão especial a ponto de não precisarmos mais nos contentar com coisas tão superficiais e pálidas? Levará ela embora o vazio que sempre volta a assaltar após cada festa, cada trepada, cada novo dia e noite?
Iremos, finalmente, perder o medo do silêncio?
Teremos um rumo a seguir?
No que acreditar?
Ali, sentado naquele sofá, se perguntava se existia mesmo uma grande redenção. Ou apenas pequenas coisas, difíceis de enxergar, mas que juntas poderiam nos trazer a paz. A verdadeira. Aquela que dura mais do que uma canção, mais do que o efeito de uma substância.
Não tinha como responder.
Talvez haja realmente uma redenção para cada um de nós.
Mas até onde ele sabia
a vida era apenas uma sucessão de momentos
que nunca mais voltam.