quinta-feira, dezembro 12, 2002

Substitutos

Os sonhos murcham.

Aos 6 anos eu fui andar de barco. Um vapor barato de excursão na Região dos Lagos. De madeira pintada de branco. Talvez descascada. Na hora de embarcar, assustado pela experiência desconhecida e pelo balançar perigoso aos olhos infantis, eu chorei e não quis entrar.

Meu pai riu e me estendeu a mão.

“Entra no barco. Não vai acontecer nada.”

E, como toda criança, eu peguei na sua mão e fui.

Mas antes disso, houve a hesitação.

E ela durou por quase vinte anos.

E quando finalmente resolvi embarcar, quando enfim precisei tomar uma decisão antes que o barco partisse

não havia uma mão estendida.

Nem ninguém pra dizer que tudo ia dar certo.

(Até porque não teriam como saber que daria.)

Não havia ninguém nem para ao menos mentir.

Você entregaria sua vida e sua alma a alguém ou alguma coisa?

Mesmo que fosse seu pai a lhe dizer que ia tudo ficar bem?

E se não fosse ele? E se fosse outra pessoa em quem você confia menos?

Que te conhece menos?

E se fosse ninguém?

E se não fosse?

É assim o tempo todo. Estamos sempre, presos, naquele instante, na iminência incerta de deixar o medo e o instinto para trás e confiarmos numa voz doce e firme.

Em confiarmos em quem, ou que, naquele momento, substitui os nossos pais.

E cada vez mais eu percebo que todas as coisas ao nosso redor são simples substitutas

Daquilo que se perdeu sem volta.

Do que se desejou e nunca existiu.

Ou existirá.

Do que não conseguimos.

Apenas tudo isso.

Um mecanismo pra sairmos de casa e fazermos o que tem que ser feito.

Pra fazer a humanidade seguir em frente.



Só um brinquedo...



Em quem mais poderemos confiar e entregar nossa vida e nossa alma? Nossos medos e desejos?

E se o barco me levar pro lugar errado?

Ou se nunca zarpar?

No fundo é todo mundo assim.

Querendo segurança e querendo o desconhecido.

Temendo e desejando.

As mesmas coisas, ao mesmo tempo.

Fingindo que outras vozes são aquelas poucas as quais nos entregamos.

Substituindo.

O que se perdeu.

O que nunca se teve.

As impossibilidades e limitações.

As incertezas.

Os sonhos que murcham.

A cada dia, a cada instante.

Só um brinquedo

E um faz de conta

Eu tive milhares de pais substitutos

E todos eles me deixaram vazio.